É experimentando traços aparentemente sem nexo – as chamadas garatujas – que as crianças pequenas desenham na tentativa de representar o que interpretam do mundo à sua volta. Nos primeiros anos de escolaridade, é particularmente importante explorar sem amarras esse tipo de produção. Muitas vezes, porém, os rabiscos não recebem a devida atenção dos professores. Há certa ansiedade em direcionar o traço dos pequenos.
“Esse cerco, ao contrário do que se imagina, fecha portas para o fazer artístico”, afirma Mirian Celeste Martins, professora do curso de pós-graduação em Educação, Arte e Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. “Muitas crianças chegam ao Ensino Fundamental com a expressividade bloqueada justamente por conta do direcionamento que tiveram na infância para atividades como reproduzir ou colorir desenhos prontos”, diz Mirian. Nesse caso, a atenção da criança se volta para a dúvida se o trabalho é reconhecível ou não, em vez de estar no desenho em si.
Cada rabisco, uma descoberta
Desde a década de 1970, a pesquisadora americana Rhoda Kellog estuda os primeiros traços das crianças. Em suas pesquisas, ela observou e analisou quase 300 mil desenhos de crianças de todo o mundo e identificou padrões de estrutura, como rabiscos básicos e áreas de aplicação dos traços no papel (veja quadro abaixo).
Kellog mapeou 20 tipos de rabiscos de crianças de até dois anos de idade, produzidos de maneira bastante primitiva em variadas combinações. Um tempo adiante, essas linhas convergem para seis diagramas básicos: círculo ou oval, quadrado ou retângulo, triângulo, cruz ou X e formas irregulares. A eles, depois são agregados elementos como sóis, linhas radiais, perímetros e figuras humanas.
Embora apresentadas de maneira evolutiva, essas classificações não devem ser consideradas fases de desenvolvimento a ser perseguidas. “Elas são representações da ação da criança, de acordo com suas descobertas e com a interpretação que faz do mundo”, afirma a professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), Rosa Iavelberg.
Com muita sutileza, portanto, as garatujas revelam o olhar da criança. Observadores, os pequenos experimentam enquanto desenham e acabam estabelecendo relações que ficam na memória. Descobrem os resultados dos movimentos que fazem com o braço, buscam as possibilidades das formas – para depois dominá-las – e encontram os limites do papel. Assim, criam de forma autônoma. “É com a exploração desses rabiscos que a criança vai construir sua produção autoral”, acrescenta Rosa.
Além de ficar atento ao desenho das crianças, é importante criar um ambiente em que o desenho possa ser cultivado (Dois exemplos de atividades: Desenho na sombra e Criação com desafio). Quando possível, oferecer diversidade de materiais e suportes colabora para ampliar o repertório e estimula a viagem criativa da meninada. “A força que faz inventar os modos de desenhar, de jogar com a percepção, de brincar com linhas, formas e cores tem de ser potencializada pelo educador. Abrir esse espaço é mais do que simplesmente deixar fazer”, acrescenta Miriam. É preciso instigar a competência simbólica, provocar o aluno a ir além e não apenas ensinar a ele regras práticas da figuração. Com isso, foge-se do controle rígido da representação, que faz os pequenos reproduzir de forma sistemática os modelos estereotipados.
By Michele Silva
Revista Nova Escola. Dez/2009
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